terça-feira, 28 de junho de 2011

Por que casar? E por que na igreja?


Portugal legislou pelo reconhecimento dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo no ano passado. A Argentina também. O Brasil acaba de reconhecer, há algumas semanas, as uniões homoafetivas como famílias plenas, o Estado de Nova Iorque também acabou de reconhecer legalmente o tais casamentos, e somente nessa semana lemos que já dois casamentos civis foram celebrados no Brasil, o que só abriu a porta para uma inevitável avalanche irrefreável de novos casamentos deste tipo.

Quando "saí do armário" publicamente, há quase 10 anos, eu escrevi que a marcha para a igualdade seria uma caminhada inevitável e que conservador nenhum, por mais que se esforçasse em sua histeria, conseguiria detê-la. Acertei. Os homofóbicos que me atacaram à época caíram hoje em descrédito (muitos em imoralidade, vexame ou - segundo seus próprios critérios religiosos- vivendo em pecado) e estão sendo catapultados para o baú empoeirado dos envergonháveis da história. Seus discursos não irão entrar nos livros que se lerão no futuro.  Mas ainda assim tenho que assumir que, de certo, naquela época eu também sabia que essa trajetória até os dias atuais, quando nos tornarmos mais iguais, seria árdua e dolorosa. E foi. Não foi fácil chegar até aqui.

Todavia, essa caminhada de luta e de esperança se deu numa velocidade bem maior que seu mesmo supus. Eu não poderia imaginar que em menos de uma década eu estaria civilmente casado - com um homem -, e às vésperas de uma cerimônia de bênção de uma igreja protestante histórica, onde lá estariam todos os nossos amigos, parentes, família, vizinhos, colegas de trabalho e até alunos.

Vejo em nosso facebook a quantidade de alunos que escrevem a mim e ao Alexandre com palavras de carinho e felicitações dulcíssimas pelo nosso casamento.  Nossos vizinhos idosos vêm nos trazer seus quitutes com tanta ternura. Após a divulgação de nosso casamento na imprensa, ouvi alunos dizendo que eu era "seu herói" e um em especial que me disse que a minha vida resgatava a dignidade da sua. Por fim, ouvi a coordenadora da faculdade onde trabalho responder a um aluno que acabara de ver na internet sobre meu casamento civil, e então parabenizava a ela e a instituição por ter um professor como eu;  ela respondeu demostrando orgulho: "sim! e ele é nosso professor!".

Bom, ensaio agora um sorriso em meu rosto e penso: "algo aconteceu nesse mundo". Isso é inegável, não é mesmo? Parece um sonho, mas felizmente não é. Esse planeta se tornou um bocadinho mais rico, capaz de descortinar belezas a olhos antes plúmbeos, hábil para se encantar com aromas antes carregados pelo vento sem sequer serem percebidos.  Se a plenitude do amor dos que batem asas para novas formas felicidade fazia com que virávamos a fronte e nos provocava semblantes amargos,  agora nos tornamos capazes do mais singelo e sublime gesto que é sorrir para a felicidade do outro; um simples ato que nos tornou encantadoramente mais humanos.

Porém, em vista de tanto que já temos conquistado, alguns ainda nos perguntam - as vezes não com palavras - se não seria "desnecessário" ou então inadequado que nos casássemos eu e Alexandre. "Até entendo morar juntos, mas daí a se casar...", dizem. A partir dessas indagações posso depreender que, para estes, casarmo-nos seria um excesso. E, ainda além, que isso feito na igreja seria um derradeiro equívoco.

Inverto, contudo, a questão. Por que não nos casarmos? Eu tenho vontade de perguntar àqueles conservadores (principalmente aos crentes fundamentalistas) que crêem que homossexuais não poderiam se casar a seguinte questão: por que seres humanos ainda devem sonhar com o casamento? O que o casamento pode trazer de bom para duas pessoas que se amam? Depois de ouvir suas respostas, eu apenas diria: é exatamente por tudo isso que eu quero me casar. É por esses exatos mesmos motivos que casais homoafetivos também devem ser livres para se aventurar nessa empreitada de se casar, por mais tola que ela possa ser.

São as mesmas razões que fazem um casal estéril querer se casar, as que motivam um casal homoafetivo, como eu e o Alexandre a fazer o mesmo.  Quero viver o (ingênuo?) sonho de acreditar que seremos felizes para sempre, que ficaremos velhinhos um ao lado do outro, de que o cordão de três dobras não se rompe, que o homem não foi feito para viver só, e que - como a bíblia diz - mais vale dois homens dormirem na mesma cama do que sós, pois assim se aquecerão melhor. E se vivemos numa sociedade onde há uma Constituição que nos afirma como iguais, e cujas Escrituras Sagradas dizem que para Deus não há homem ou mulher, pois aos seus olhos todos somos um; nesse caso, então, se eu quero casar, eu posso e vou casar. Simples assim.

E não se casar na igreja por quê? Temos eu e Alexandre uma história de vida, de imersão visceral dentro da igreja. Logo, o casamento, como rito religioso faz mais sentido em nossa história do que o faria na maioria dos brasileiros religiosos-não-praticantes que se casam todos os dias nas igrejas. Eu e Alexandre temos um background profundo na igreja, e isso faz parte do que somos de como nos fizemos. E, talvez por isso, um dia desejamos  nos casar. Porque isso é verdadeiro em nossos corações. É coerente com nossa história de vida. E se nossa igreja nos aceita e se dispõe a abençoar nossa união, então ninguém tem autoridade para deslegitimar tal exemplo concreto de ethos cristão e de correção moral.

Para além disso, vale dizer, nosso casamento na igreja é exatamente o que faz com que este mesmo casamento seja possível. Como assim? Trata-se do efeito a gerar a causa? Isso mesmo. É a luta, a ação pedagógica de inovação iconoclasta como a que fazemos que faz e fez com que cada uma das conquistas que mencionei no início desse texto fossem possíveis. É essa capacidade de sonhar com voos mais altos no céu de liberdade e auto-realização que move a história, que faz com que nós seres humanos caminhemos à frente, em vez de nos petrificarmos nas margens superadas da história. Foi porque um dia um outsider resolveu corajosamente viver em plenitude, que hoje temos sorrisos substituindo ranger de dentes. Penso agora em tantos homossexuais e seus amigos e familiares que perderam suas vidas ou suas reputações pois, um dia, ousaram acreditar da liberdade. Eles são nossos heróis que desbravaram e pavimentaram a estrada que hoje percorremos com tanto menos percalços.

Quando homossexuais se casam, seja civil ou religiosamente, ao mesmo tempo redefine-se o casamento e o reforça.  Redefine-o, pois ele deixa de ser um pacto de posse do macho sobre a fêmea: isso é simbolicamente explodido com a entrada dos homossexuais nessa instituição. Reforça-o, pois amplia sua capacidade de agregar todos aqueles que ainda acreditam no amor doador, cúmplice e - por mais careta que possa ser - fiel.

Por isso vamos nos casar. Pois acreditamos no amor que une nossas almas. Porque um dia sonhamos em ter nossas famílias e amigos ao nosso lado não em um contrato de posse, mas numa celebração fulgurante da alegria que é o encontro de nossas almas. Somos eu e Alexandre, e todos vocês que nos ladeam nessa aventura de esperança os que, orgulhosamente, se constituem no motor da superação daquele mundo antes desafortunado pelos ventos sulfurosos do desamor e da frieza, para a abertura do espírito humano à brisa suave que traz o aroma do encanto, do sonho e da felicidade.

Daniel

2 comentários:

  1. Lindo, filho querido, tudo que vc escreveu! E eu completo usando suas próprias palavras quando, certa vez, definiu o amor:
    "O amor é transcendental. É um demolidor de barreiras. Ele é subversivo! Ele une inimigos, apazigua os irreconciliáveis, faz afinidade onde há diferença, e traz compatibilidade aos incompatíveis".
    Daniel Moraes

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  2. Não posso deixar de postar novamente aqui pra falar sobre a riqueza desse texto, escrito por Daniel.
    Já li e reli várias vezes...,e não consigo lê-lo sem chorar...muuito.
    Contudo, talvez somente os que trilharam o caminho da humilhação, da rejeição e discriminação consigam lograr o cerne desse texto.
    Entendo que ele deva ser publicado. Ele marca um momento histórico! Um tempo tão sonhado,... Enfim, ele chegou!

    "Que aurora de porvir! Acorda natureza!
    Os céus presentearam Daniel e Alexandre!
    Eis o amor! Eis o prazer!
    Foram-se as dores solitárias... Eis o martírio findo!
    Quanta glória pressinto para o futuro desse amor!Duas almas de sonhos povoadas que,
    unidas, se encontram fortalecidas.
    Não mais medos nem prantos solitários! São almas unidas!". Lucilene Moraes
    Não mais medos nem prantos solitários! São almas unidas!

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